JUSTIÇA SEM JUSTIÇAMENTO
Como Promotor DE JUSTIÇA que fui, sou e continuarei sendo, confesso-me estupefato com tudo o que tenho lido e ouvido a respeito do brutal assassinato da pequena Isabella Oliveira Nardoni em São Paulo. Sobretudo como pai e cidadão, posso imaginar a dor de perder uma filha nas circunstâncias em que o assassinato ocorreu, e o quanto se impõe uma manifestação séria e exemplar do Poder Judiciário. Vejo, no entanto, com grande preocupação, os meios de comunicação fugindo de seu objetivo de somente informar, para acusar e condenar o pai e madrasta da vítima, apontando-os, desde o dia seguinte ao do crime, como os maiores assassinos da história policial brasileira, em razão do que se avizinha um triste episódio de linchamento.
A polícia paulista fala até em pedido de prisão preventiva, magoada com o Poder Judiciário, porque este, numa elogiável demonstração de independência, libertou os suspeitos. É como se a prisão fosse o estado natural do homem que delinqüe. Não é assim. Tem-se de ter muito cuidado com a liberdade humana, que, da mesma forma que a vida, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Por isso, a lei estabelece motivos para uma custódia provisória, que, pelo que se noticiou do caso até agora, não estão presentes. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá não têm antecedentes criminais (condenações trânsitas em julgado), não estão dificultando a apuração do fato, pelo contrário, desde o primeiro momento, dispuseram-se a colaborar com a autoridade policial, e não há prova alguma de que pretendam obstar a aplicação da lei penal, fugindo. Então para que prender? Clamor público nacional, gerado dessa forma, não. Contradições em depoimentos, muito menos. Se contradições ensejassem prisões, todos os réus em processos criminais neste país estariam presos. Alexandre e Anna Carolina poderiam ter-se calado desde o primeiro convite da autoridade policial para prestarem depoimento, e não se poderia cogitar de prisão por isso, porque a Constituição Federal assegura-lhes esse direito (art. 5º, LXIII).
Considerando que esse homicídio será julgado pelo Tribunal do Júri, pelo povo então, é deplorável o desrespeito até agora exteriorizado com relação à garantia constitucional da plenitude da defesa, que a Carta Magna consagrou como um dos princípios fundamentais do Júri (art. 5º, XXXVIII, letra “a”). Os formadores de opinião, através das matérias e entrevistas diárias, estão contribuindo, lamentavelmente, antes da instauração do devido processo legal, para a impossibilidade de defesa desse casal. Este é o caminho mais rápido para que, amanhã, o Júri perca sua razão de ser e, por isso, para que se pretenda sua extinção.
Depois de três semanas de incriminações, o casal foi entrevistado num programa de televisão. Não se deixou, no entanto, de chamar a atenção dos telespectadores para que ficassem atentos à expressão dos entrevistados. Cuidou-se de, maldosamente, ouvir diversos psiquiatras para pontuarem aspectos denotativos da insinceridade do casal. Um deles, no entanto, Marcos Pacheco Ferraz, psiquiatra paulista, contrariando a intenção de seu interlocutor, salientou: “ninguém enfrenta impunemente uma câmera“. Isso tudo é uma forma de violência inadmissível. Por que não deixar que a justiça se manifeste serenamente, sem condicionamentos? Vamos deixar de brincar com coisas que a humanidade sofreu para conquistar.
No Brasil, o número de atentados bárbaros contra a vida de crianças, tão ou mais brutais do que esse, é grande. Os escândalos financeiros são profusos, através dos quais dinheiro público que deveria estar sendo empregado na melhoria das condições de vida do povo, em especial, de sua saúde, é saqueado sem pudor algum. E isso vem matando milhares de pessoas. Não vejo esse empenho pertinaz e duradouro para a execração pública de seus autores. Não vejo as manifestações desvairadamente agressivas da população contra eles, pedindo sua prisão e condenação diariamente, mesmo sendo a maior vítima. Não vejo esse justiçamento.
De repente, com esse frenesi dos meios de comunicação para a condenação de Alexandre e Anna Carolina, reduziram o foco na gravíssima epidemia da dengue, que está matando dezenas de pessoas no Rio de Janeiro. Deixaram de priorizar as notícias sobre o mau uso dos cartões corporativos, vergonhoso atentado aos cofres públicos. Em segundo plano, ficaram os desvios de milhões de reais, praticados pelas ONGs. Parece que vivemos num paraíso em matéria de ética na política, de respeito ao patrimônio público, de satisfação das necessidades primárias da população.
O crime cometido contra Isabella foi repulsivo? Foi. Quem a matou merece uma reprovação? Sim. E muito severa. Mas a defesa plena de seu autor tem de ser garantida, até porque é presumidamente inocente até que seja condenado irrecorrivelmente (art. 5º, LVII, da CF).
Espero que o Ministério Público paulista abra bem os olhos nesse caso, o da parte e o do fiscal da lei, para evitar essas exacerbações perniciosas à realização da verdadeira justiça.
Espero que a Ordem dos Advogados do Brasil, tantas vezes atuante na defesa da ordem e das garantias constitucionais, entre em campo urgentemente.
Espero que alguém impeça que a exploração sensacionalista desse crime continue turbando o relacionamento de pais e filhos, de enteados e madrastas, retirando nossas crianças desse circulo vicioso do medo, devolvendo-lhes a virgindade da imaginação e a beleza da vida familiar.
MARCELO ROBERTO RIBEIRO, Procurador de Justiça.
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