Desembargador Marco Antônio Bandeira Scapini, aposentado: “O Juiz hoje tem que ter coragem para soltar e não para prender”
Aposentado recentemente, o Desembargador Marco Antonio Bandeira Scapini teve uma trajetória marcada por posições bem definidas, ainda que polêmicas, dentro do Judiciário: fez parte desde o início do chamado grupo do Direito Alternativo - o que, segundo conta, rendeu aos integrantes retaliações como promoções por merecimento -, e aceitou a incumbência de negociar o maior motim no Presídio Central, liderado por Dilonei Francisco Melara, atitude que lhe rendeu duras críticas, principalmente dentro da magistratura.
A paixão pelo Direito prevaleceu até mesmo sobre a que nutre pelo futebol: quando estava na faculdade, foi convidado por um emissário de Rubens Minelli para jogar no Internacional, e recusou por dois motivos: primeiro, por ser gremista e segundo, porque estava decidido a ser Juiz de Direito.
Designado Juiz da Vara de Execuções Criminais da Capital, passou a imprimir uma nova forma de interpretar os laudos de apenados para a progressão de regime, que não costumava ser deferida. “Havia vagas para os estabelecimentos do semi-aberto porque ninguém progredia”, relembra. Considera a Lei de Execuções Penais exemplar, o grande problema é que não é cumprida, em especial no que se refere aos benefícios dos presos. Diante das precárias condições dos estabelecimentos penais e da falta de programas para a ressocialização de condenados, lembra que o Juiz tem que obedecer princípios constitucionais. “Prender é muito fácil, todo mundo está de acordo, mas para soltar o Juiz tem que ter coragem, porque a Imprensa, a opinião pública, é toda desfavorável.”
Desembargador Scapini atuou como magistrado por 28 anos
(Foto: Gustavo Alencastro)
Desembargador Scapini, esta é uma entrevista de despedida do exercício da magistratura, para contar um pouco das conquistas, da mazelas e do que poderia ter sido melhor. Mas vamos começar pelo início da sua carreira, como o senhor se tornou Juiz?
Eu me tornei Juiz por influência especialmente da minha tia, irmã da minha mãe. A minha mãe é Teresinha de Jesus Bandeira Scapini e a minha tia, Lurdes Bandeira Pereira, ela é mãe do Desembargador Marcelo Bandeira Pereira. Minha tia me influenciou muito, o meu tio era magistrado, foi Desembargador, e o Ministro Athos Gusmão Carneiro também me incentivou muito. Inclusive numa época tive que fazer uma opção: eu jogava futebol, na faculdade, e fui jogar uma partida no Beira-Rio, em 1974. O Rubens Minelli viu o jogo, ele era técnico do Internacional, e mandou um dirigente do clube na faculdade, Carlos Tadeu Bandeira - lembro bem o nome dele -, convidar-me para jogar no Internacional.
Eu disse que não por dois motivos: primeiro, porque sou gremista; segundo, porque queria ser Juiz. Eu nasci em 1953, tinha 20 anos na época, não tinha completado 21. Eu sempre quis ser Juiz, tanto que o concurso que fiz e que eu queria passar era para a Magistratura.
Comecei como Pretor em 1980 e, em 1982, fiz o concurso para Juiz de Direito, fui aprovado, fui para a Comarca de Casca, de lá fui para Tramandaí, a seguir para Caxias do Sul e, depois, para Porto Alegre. Não fui para o Tribunal de Alçada, fiquei recusando promoção por mais de dois anos.
Por quê?
Aí há questões de natureza pessoal, eu não tinha interesse de ir para o Tribunal de Alçada, embora respeitasse muito o Tribunal.
O período coincidiu com o meu ingresso no Tribunal Eleitoral, na Justiça Eleitoral, onde se podia ganhar um pouco mais. Quando se extinguiu o Tribunal de Alçada, aí sim, aceitei promoção para Desembargador.
Como Desembargador, atuei inicialmente na 14ª Câmara Cível, depois pedi remoção para a 6ª Câmara Criminal, onde fiquei até o fim. Permaneci de 1998, quando fui promovido, até 2001 ou 2002, não me recordo bem, no Cível, e de 2002 até agora, 2008, no Crime.
E no 1º Grau, o senhor atuou mais no Crime ou no Cível?
No 1º Grau, em Casca era clínica geral, chamava-se Comarca de 1ª entrância. Depois, em Tramandaí, também fazia Crime e Cível e, em Caxias do Sul, atuei somente no Cível, com alguma substituição eventual no Crime.
Atuei no Cível, em Porto Alegre, de 1989 a 1994, quando fui para a Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital e lá permaneci até 1998.
“Logo que cheguei na Vara de Execuções
os estabelecimentos do semi-aberto
tinham vagas, porque os presos não conseguiam
alcançar a progressão de regime”
Como o senhor vê, hoje, essa questão da superlotação dos presídios, como era quando o senhor estava na VEC e como senhor vê hoje?
Quando eu estava lá, já era terrível a situação, porque a lei era diferente, a interpretação era diferente, os presos entravam e não saíam. Logo que cheguei na Vara de Execuções, em 1994, os estabelecimentos do regime semi-aberto tinham vagas, porque os presos simplesmente não conseguiam alcançar a progressão de regime.
Por que razões?
Porque havia uma interpretação de que somente com laudos favoráveis se poderia conceder a progressão de regime e o livramento condicional, esta era a interpretação de alguns Juízes. Então, o regime fechado ficou inchado, os presos não saiam, só entravam.
Procuramos implantar, na Vara de Execuções, outra mentalidade, outra forma de interpretar a lei, analisando criticamente esses laudos, que eram realizados em situações absurdas. Os presos eram ouvidos durante 15 minutos algemados, eles chegavam para os psiquiatras sem tomar banho e sem se alimentar, em condições absolutamente precárias, e os psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, enfim, a partir daquele exame realizado em 15 minutos, absolutamente superficial, sentiam-se em condições de dizer se a pessoa poderia ou não obter uma troca de regime, diziam que o apenado não tinha evoluído, não tinha melhorado. Eu argumentava em cima disso: como vão melhorar os presos nos nossos estabelecimentos? Não há como.
Então, aquilo tudo era uma falácia, uma espécie de um jogo, de uma farsa que servia para acomodar a consciência, e o Juiz tranqüilamente indeferia os pedidos, porque os laudos eram desfavoráveis.
Hoje, a situação está pior, porque aumentou muito o número de apenados e me parece que a estrutura do Estado permanece a mesma, ou seja, não há a criação de um número de vagas que acompanhe o aumento da criminalidade e o aumento do número de pessoas presas.
Não há uma relação entre a progressão de regime, aplicada praticamente a todos os apenados, a reincidência e o retorno ao presídio? Como o senhor vê essa questão da reincidência e do nível de violência?
A reincidência é elevada em quase todos os países do mundo, mas parece que naqueles países em que os presídios são realmente melhores, em que há um tratamento específico - levando em conta as condições pessoais de cada preso -, os índices de reincidência baixam um pouco.
Ocorre que lidamos muito com os delitos dos pobres, como furto e roubo, em que há uma tendência muito forte à reincidência, porque eles são recolhidos, ingressam no sistema prisional e ali, todo mundo já sabe, saem pior do que entraram, muitas vezes forçados a praticar crimes, porque no presídio vigora a lei do mais forte.
“A questão da violência e da criminalidade
não é abordada como deve ser, é abordada sempre
a partir das suas conseqüências
e não das suas causas”
Eles não vivem em celas individuais a não ser na PASC, vivem no sistema de prisão por galerias, então, ali há todo um regime interno, uma legislação particular deles, em que assumem compromissos, são obrigados a aderir, em primeiro lugar, a um lado, quando ingressam no sistema. Há os que se chamam “abertos”, que não aderiram a lado nenhum, mas eles pertencem, no final das contas, ao grupo dos que não têm lado nenhum, quer dizer, um terceiro grupo.
Quando eles saem em liberdade, muitos deles já saem avisados de que deverão mandar dinheiro para o cárcere, vão ter de sustentar os que continuam presos e a sua família.
Isso vai gerando uma bola de neve, o sujeito se vê na obrigação de praticar outros crimes na rua, e, muitas vezes, são forçados por autoridades do próprio Estado, em face do esquema de corrupção, que é do conhecimento geral, não estou dizendo novidade nenhuma.
Então, imagina a pessoa passar vários anos presa, ao sair não tem para onde ir, pois perdeu os vínculos, não tem emprego, porque ninguém dá emprego para ex-presidiário, o que ela vai fazer? O que tu farias para sobreviver?
No começo, até pode pedir para alguém um auxílio, dinheiro, mas em seguida vai começar a praticar novos crimes, não adianta, isso é uma bola de neve. A questão da violência e da criminalidade não é abordada como deve ser, ela é abordada sempre a partir das suas conseqüências e não das suas causas. No dia em que começarem a enfrentar a questão a partir das causas, a tendência talvez seja a de começar a diminuir.
“A Lei das Execuções não é cumprida,
e alguém pode dizer que ela é de primeiro mundo
e nós somos um país de terceiro mundo.
Então, quer dizer que só nos servem as leis ruins?”
Normalmente, as críticas são à lei, muita gente acha que a Lei de Execuções Penais (LEP) é muito benéfica.
A Lei é boa, só que não é cumprida. Agora está sendo cumprida quanto à progressão de regime, mas não é o suficiente. Eu poderia citar no mínimo uns 100 artigos da Lei de Execuções Penais que são descumpridos e quase todos eles naquilo que diz respeito aos benefícios dos presos.
Então, a lei é ignorada no que diz respeito aos benefícios: assistência à saúde, assistência ao egresso, assistência psicológica, assistência material, individualização da pena, condições dos estabelecimentos penais, tudo é descumprido. Nós vivemos um caos no sistema.
É o respeito à dignidade humana, basicamente.
A violação dos direitos humanos é constante nos estabelecimentos penais. E veja bem que não estou falando em direitos humanos relacionando somente com presos, porque os direitos humanos não são excludentes, eles existem para quem precisa deles.
Por circunstâncias que conhecemos, as pessoas que estão presas têm sempre os seus direitos violados, por isso se fala tanto que os direitos humanos só servem para proteger bandido, e isso não é verdade.
“A idéia vigorante é a seguinte: quanto piores
as condições, melhor. Então, chegamos à conclusão
de que o presídio nada mais é
do que o retrato do nível cultural da sociedade”
Eu estava dizendo que a Lei das Execuções não é cumprida, e alguém pode dizer que ela é de primeiro mundo, e nós somos um país de terceiro mundo. Então, quer dizer que só nos servem as leis ruins? As leis boas não nos servem? Esse argumento não tem sustentação, a lei é boa, é perfeitamente possível de ser executada, mas não é por quê? Porque não há vontade política, há carência de recursos materiais, e essa falta de vontade política decorre de uma espécie de prazer mórbido que a sociedade tem de ver os apenados naquelas condições. A idéia vigorante é a seguinte: quanto piores as condições, melhor. Se fôssemos verificar os presídios da Espanha, citando só um exemplo, alguns têm piscina, têm máquina de Coca-Cola, os presos têm cartão de crédito. Isso para nós é impensável, soaria como uma afronta para nós.
Então, chegamos à conclusão de que o presídio nada mais é do que o retrato do nível cultural da sociedade. É isso.
“Todos os dias, milhares saem em liberdade
no Brasil inteiro. E nós, sociedade, teremos de suportar
o monstro que criamos lá dentro”
Nós temos o que merecemos, temos os políticos que merecemos, os Juízes que merecemos, temos, enfim, os profissionais que merecemos, os hospitais que merecemos, os presídios que merecemos. Será que é isso mesmo? Penso que devemos investir em cultura, essa questão prisional tem que ser estudada a partir de uma massa pensante, tem que envolver as universidades, envolver os intelectuais e as pessoas que entendem na prática do problema. Não é uma questão singela, é uma questão extremamente complexa, que não se resolve com repressão.
Temos autoridades da Segurança Pública que dizem: “Bandido bom para mim é bandido morto, bandido tem que estar na cadeia”.
Então, criamos a seguinte situação: pegamos uma pessoa, colocamos nas piores condições possíveis, sabendo que um dia ela vai sair em liberdade, se sobreviver. Todos os dias, milhares delas saem em liberdade no Brasil inteiro, e nós, sociedade, estamos agüentando as conseqüências daquilo que criamos, teremos de suportar o monstro que criamos lá dentro.
Isso no mínimo, para não usar outra expressão, é menos inteligente, no meu modo de ver.
Como o senhor, sendo Juiz Criminal e com essa visão, lidava com essa questão quando tinha que julgar, que mandar alguém para o regime fechado?
Tenho uma visão muito clara sobre isso e procurei durante toda a minha vida, como Juiz Criminal, só encaminhar para a prisão aquelas pessoas que realmente significavam um risco para a sociedade. Tentei pautar minha conduta nesse sentido, não vou encarcerar alguém que cometeu um delito menos grave.
“O legislador nunca conseguiu prever
todas as hipóteses que vão se apresentar ao Juiz,
por isso tem que se interpretar a lei
de acordo com o caso que se apresenta”
Agora, há pessoas, é preciso reconhecer, que não podem estar convivendo com a sociedade, e a sociedade também não tem culpa de toda a sua ignorância, de seu baixo nível cultural. As pessoas são decentes, trabalhadoras como regra, e há pessoas que precisam ser afastadas do convívio social.
Então, essas pessoas, sim, eu tranqüilamente afastava, mas sempre levava em conta as condições dos estabelecimentos penais, isso nunca me deixou em paz: mandar alguém, sabendo que estava mandando a pessoa para aquelas condições.
Em que tipo de crimes o senhor optava pelo encarceramento?
Os cometidos com violência ou grave ameaça, como estupro, atentado violento ao pudor e dependendo da gravidade do fato em si. Porque julgamos o caso concreto, não julgamos em tese, e sim um caso que se apresenta: um latrocínio, um roubo, crimes mais graves em que o réu seja reincidente. A própria lei oferece a saída para as questões.
O que o senhor pensa do monitoramento eletrônico dos apenados?
No aberto penso que é errado, a própria lei proíbe, porque a Lei de Execuções Penais diz taxativamente que a pena do regime aberto será cumprida em albergue sem qualquer espécie de vigilância, então esse tipo de vigilância não pode ser aplicado no regime aberto.
No regime semi-aberto - imagino que estejam talvez pensando para outro tipo de apenado -, penso que seria conveniente consultar os presos sobre o que eles prefeririam. Eu já consultei, e, de forma unânime, eles falaram que prefeririam estar com o monitoramento eletrônico a estar submetidos aos nossos estabelecimentos.
Os nossos estabelecimentos do semi-aberto, na sua maioria, estão em Charqueadas, não estou falando na Grande Porto Alegre, e os presos também na sua maioria são do Vale dos Sinos, de Porto Alegre, então há uma dificuldade muito grande de conseguir e manter o trabalho. Também por isso o preso do regime semi-aberto sai e comete outros delitos. Então sou a favor nessas condições, no regime aberto não.
“A lei a rigor não autoriza a concessão de prisão domiciliar
para um preso do regime fechado, mas qual seria
o sentido de manter uma pessoa tetraplégica no presídio?”
E a prisão domiciliar para casos de superlotação?
Desde o tempo da Vara de Execuções, nós concedíamos prisão domiciliar, não só para o preso do regime aberto, como a lei parece que sugeria, como também para casos do regime semi-aberto, inclusive no regime fechado.
Por exemplo, nós - digo nós, porque tive colegas na Vara de Execuções, como o Dr. Fernando Cabral Junior, com quem atuei durante muito tempo, e sempre fazíamos as coisas mais ou menos em conjunto - encontramos preso, no regime fechado, um tetraplégico, o sujeito só mexia com os olhos.
A lei a rigor não autoriza a concessão de prisão domiciliar para um preso do regime fechado, mas qual seria o sentido de manter uma pessoa tetraplégica no presídio?
Os indultos concedem nessas situações.
Aí eu teria de aguardar um decreto específico, porque quem concede indulto é o Presidente da República. Encontramos casos de pessoas que não tinham a mínima possibilidade de voltar a delinqüir e que estavam presas. Claro, encontramos um que estava numa cadeira de rodas, mas já tinha cometido o crime, ele era o autor intelectual dos assaltos. Então, àquele não se podia dar prisão domiciliar, apesar de ele se encontrar numa cadeira de rodas, mas outros foram feridos na perseguição policial, ficaram paraplégicos, tetraplégicos.
Enfim, o legislador nunca conseguiu prever todas as hipóteses que vão se apresentar ao Juiz, por isso tem que se interpretar a lei de acordo com o caso que se apresenta.
“Só chegam 3,5% dos casos ao Judiciário.
Logo, o Judiciário nunca foi e nunca será caminho
para a solução da violência e da criminalidade”
Nesse caso da superlotação, além de ser um problema social a delinqüência, o senhor acha que há também uma parcela de responsabilidade dos Juízes? Os Juízes mandam demais para o regime fechado?
Os Juízes, como regra, são bastante rigorosos. Veja bem, eu tenho uma forma de ver, outro Juiz tem outra, cada um pensa com sua cabeça, julga de acordo com sua consciência. Há Juízes mais rigorosos, há Juízes mais liberais, enfim, respeito a todos, sei conviver com a divergência, mas não pode ser dito que os Juízes mandam demais para a cadeia.
Segundo pesquisas recentes, no Estado do Rio Grande do Sul, a maior parte da criminalidade chega ao Judiciário, são 3,5% dos crimes. Se contarmos que em metade desses 3,5% a pessoa é absolvida, e que em boa parte é extinta a sua punibilidade, não vai cumprir a pena, podemos fazer um cálculo aproximado de quantas das pessoas que cometem crimes estão presas, vai passar um pouquinho de 1% talvez.
Então, não se pode atribuir esse problema ao Judiciário, como também não pode ser atribuído, pelas mesmas razões, o problema da violência na rua, das pessoas que são soltas ou não são presas. É exatamente por isso, porque só chegam 3,5% dos casos ao Judiciário. Logo, o Judiciário nunca foi e nunca será caminho para a solução da violência e da criminalidade.
Desembargador, o senhor disse que 3,5% dos casos chegam à Justiça e em 96,5% dos casos não acontece nenhuma repressão, vamos dizer assim. O que está faltando à sociedade?
O Rio Grande do Sul tem o índice mais alto do Brasil com relação aos casos que chegam ao Judiciário, são 3,5%. Penso que falta educação, falta justiça social e, como disse a minha filha, falta escola para todos, comida para todos, quer dizer, vida digna para todos.
Há um estudo de um italiano, Alessandro Barata, considerado como a maior autoridade do mundo, faleceu recentemente, nas questões de violência e criminalidade, e ele afirma que, nos países em que as diferenças sociais são muito acentuadas, há uma tendência muito forte de aumento da violência e da criminalidade.
Ele cita como exemplo a Suécia, onde todos têm um nível de vida semelhante, com um alto padrão de vida, e praticamente não há violência e criminalidade. Na Somália, onde todos têm um padrão de vida muito baixo, também não havia violência e criminalidade, naquela época pelo menos quando ele escreveu. E, nos países onde a distância entre o rico e o pobre é muito grande, isso acaba gerando insatisfação e, na corrida pela vida, há uma camada pobre da sociedade que está sempre em desvantagem e jamais vai galgar outra condição, salvo uma situação absolutamente excepcional. Então, há uma corrida desigual, nossa sociedade é muito desigual, e nesse caso se verifica uma maior quantidade de violência e de criminalidade.
“O caso do Melara me marcou muito,
porque foi um episódio grave,
sofri muitas críticas dentro da própria magistratura,
pois acharam que eu não devia ter interferido”
O que lhe marcou nessa sua trajetória?
Foi o caso do Melara, já falei muito sobre isso, não quero mais falar, mas, é claro, me marcou muito, porque foi um episódio muito grave, sofri muitas críticas dentro da própria magistratura, pois acharam que eu não devia ter interferido. Acontece que tínhamos 26 reféns e os amotinados só queriam negociar comigo ou com o Marcos Rolim (então Deputado Estadual), não aceitavam mais ninguém e ameaçavam matar as pessoas que estavam lá.
Eu fui com a autorização dos especialistas em motins, que disseram que eu devia ir, e fiquei imaginando que, se me recusasse e eles matassem os reféns, eu ia ser acusado de ser covarde e ter desonrado o Judiciário, e com razão.
Então, fiz o que eu achava certo.
Negociei com os amotinados durante um bom tempo, dentro do Presídio Central, daí chegamos àquela solução de deixá-los sair, liberar primeiro as mulheres reféns, depois deixá-los sair naqueles carros. A idéia era muito simples: eles sairiam até se afastar da zona urbana, sempre seguidos, depois seriam cercados, eles não teriam arma, não teriam comida nem onde se esconder, e era só uma questão de tempo para se entregarem. Só que alguém da Polícia Civil resolveu sair atacando os foragidos em vários pontos, daí deu no que deu.
O que passou pela sua cabeça quando o senhor resolveu entrar no presídio?
Eu sempre entrava nos presídios, é uma das obrigações do Juiz das Execuções entrar em presídio.
Mas não naquela situação.
Quando fui chamado para negociar? Eu, sinceramente, não vou dizer que não fiquei com medo, claro que fiquei, mas havia coisas que estavam acima do meu medo, pois era a profissão que escolhi, era uma exposição natural da profissão, a obrigação que tinha frente aos seres humanos que estavam ali.
O resumo da história é que eu não queria que ninguém morresse, nem os amotinados, muito menos os reféns. Então, fiz o que a minha consciência mandou e o que as pessoas mais próximas me indicaram para fazer. E sempre assumi total responsabilidade pelo que fiz lá e faria tudo da mesma forma de novo.
“Fiz parte do movimento do Direito Alternativo
desde o início. Sofremos muitas represálias
dentro do Judiciário e todos que participaram
daquele movimento ficaram estigmatizados”
E no Cível, o senhor também sempre foi um Juiz de vanguarda, como no crime?
Fiz parte do movimento do Direito Alternativo desde o início, que deu uma repercussão muito grande. Sofremos muitas represálias dentro do Judiciário e todos que participaram daquele movimento ficaram estigmatizados.
Que tipo de represália o senhor sofreu?
Por exemplo, eu sempre era promovido por merecimento, apesar de nunca dar importância para isso, mas a partir dali todos os que participaram do movimento, que eram promovidos só por merecimento, começaram a ser promovidos somente por antigüidade. Houve votos imotivados de recusa à remoção, quando um só de nós estava se habilitando àquela remoção para uma determinada Vara, no caso era uma Vara da Fazenda Pública.
Então, houve algumas perseguições, mas por outro lado muitas pessoas compreenderam o que se passava. Na verdade, passamos uma idéia de prepotência, porque o que fez eclodir o movimento foi uma reportagem em um jornal de São Paulo. Fomos ingênuos na entrevista, embora reconheça que o jornalista publicou aquilo que falamos para ele, só que ninguém sabe que nós ficamos uma semana convivendo com o jornalista num clima mais de proximidade e então não cuidávamos muito a linguagem que empregávamos, nem sabíamos que estávamos sendo entrevistados naquele momento.
Mas a impressão que passamos foi de que só nós éramos preocupados em fazer justiça, quando este estudo do Direito Alternativo não era mais do que tentar criar uma teoria para algo que os Juízes já faziam, quer dizer, era uma prática em busca de uma teoria, só isso, nada mais.
“Prender é muito fácil, todo mundo está de acordo,
mas para soltar o Juiz tem que ter coragem,
porque a Imprensa, a opinião pública,
é toda desfavorável”
A imprensa costuma criticar quando o Juiz manda soltar alguém preso em flagrante, ou após determinada operação da polícia, a sociedade tem dificuldade de entender, às vezes, essas decisões.
Penso que se tem que dar a devida explicação, que é aquela que se dá por escrito na fundamentação. Há princípios constitucionais que o Juiz tem que observar. Ninguém se importa quando o sujeito que estava engolindo um salsichão no supermercado é preso por furto.
O Juiz, hoje, tem que ter coragem para soltar e não para prender, por causa da opinião pública. Prender é muito fácil, todo mundo está de acordo, mas para soltar o Juiz tem que ter coragem, porque a Imprensa, a opinião pública é toda desfavorável. A função de magistrado é revestida de garantias exatamente para poder julgar com independência, para garantir os direitos individuais, apesar das opiniões em contrário.
Lembro de um jornalista, numa cidade do Interior onde trabalhei, que me disse que havia colocado Fulano de Tal na cadeia. Ele havia feito reportagem no jornal da cidade a respeito de um crime e acompanhou aquilo desde o início. Ele colocava as manchetes no jornal assim: “Assassino de Fulano será julgado amanhã”. Isso em países mais desenvolvidos, e hoje até mesmo no Brasil, é impensável, não se pode prejulgar. Imaginem a cabeça com que os jurados foram realizar aquele julgamento, e o jornalista se vangloriava disto, de ter condenado o Fulano. O que ele queria dizer é que não havia prova, mas mesmo assim conseguiu condenar, e eu perguntei se ele já havia se dado conta de que poderia estar cometendo uma enorme injustiça. Ele não gostou muito.
Vamos chegar a tempos modernos. O que, no seu entender, é um bom exemplo de campanha feita pelos órgãos de comunicação na área que envolva justiça e que acaba prejulgando?
Continua, mas de uma forma mais velada. A Imprensa, de um modo geral, tem tomado um pouco mais de cuidado, tem procurado ouvir a parte contrária – alguém que é mencionado numa reportagem, procuram ouvi-lo –, pelo menos os grandes jornais têm agido assim.
“O Judiciário não tem que fazer curso de combate
ao crime organizado o Judiciário está para julgar.
Alguém, alguma vez, viu o Judiciário fazendo curso
com a Defensoria Pública e com os advogados
sobre táticas de defesa? Nunca, e nem poderia”
Para evitar indenizações, condenações.
Está havendo, ainda, uma séria incompreensão sobre o papel do Judiciário e uma incompreensão que existe dentro dos próprios órgãos do Poder Judiciário. Por exemplo, vejo notícias em jornais e convites do tipo: “Judiciário fará curso de especialização no combate ao crime organizado juntamente com a Polícia e com o Ministério Público”. Mas o que é isso?
O Judiciário não tem que fazer curso de combate ao crime organizado, o Judiciário está para julgar. Alguém, alguma vez, viu o Judiciário fazendo curso com a Defensoria Pública e com os advogados sobre táticas de defesa? Nunca, e nem poderia. O Judiciário tem que estar eqüidistante, tem que estar longe disso. Se o Ministério Público quer fazer um curso com a Polícia sobre combate à criminalidade, que o faça, mas o Judiciário não pode participar disso. Os próprios órgãos do Judiciário não estão compreendendo o papel do Poder.
Quanto à questão das algemas, o que o senhor pensa da Súmula do STF?
Penso que é correta, mas o policial tem que ter a capacidade de perceber, no ato, quem está representando perigo ou não, quem está sofrendo risco ou não. Por exemplo, sempre que eu ia no presídio e falava com o Melara, ele me pedia para ficar algemado, eu nunca falei com preso algemado, e ele sempre me pedia para ficar algemado.
“Sempre que eu ia no presídio
e falava com o Melara,
ele me pedia para ficar algemado”
Por quê?
Porque ele dizia que eles estavam querendo arrumar um motivo para matá-lo, ele estava se referindo aos agentes, que ele achava que queriam matá-lo. “Eles querem uma desculpa para me matar. O senhor imagine: o senhor entra aqui e fala comigo, eles me dão um tiro, estou sem algema, depois lhe matam também e dizem que fui eu que lhe matei.” É um mundo cão, uma coisa que não existe. Ele pensava nisto: queria falar algemado para que ninguém pudesse acusá-lo de ter atacado alguém. Era a garantia dele mesmo dentro do presídio.
Esta questão não me parece tão difícil. Os policiais sabem quem está oferecendo risco e quem não está. Por exemplo, se tu prendes alguém em flagrante em um assalto, é lógico que terás que algemar a pessoa, uma pessoa que estava armada, mas se tu prendes alguém por uma acusação de estelionato, em casa, dormindo, não há motivo para algemá-la.
“O Judiciário trata diferentemente as pessoas,
porque a sociedade é desigual. Se há problema, realmente,
ele está muito mais na lei do que no Judiciário”
Nesta questão de processos contra figurões, os chamados crimes de colarinho branco, a sociedade reclama que não vê punição para figurões, políticos em casos de corrupção. A lei é mais benéfica para esse tipo de crime?
Eu reconheço que o Judiciário trata diferentemente as pessoas, porque a sociedade é desigual. Se há problema, realmente, ele está muito mais na lei do que no Judiciário. A lei privilegia o delito dos pobres, o roubo, o furto, os delitos patrimoniais. Nesses delitos cometidos pelos pobres as penas são mais graves, a condenação é mais fácil em razão de haver flagrante, nem sempre a pessoa teve a assistência que merecia. Apesar de todos os esforços, a Defensoria Pública, por exemplo, não tem uma estrutura ainda adequada, tem profissionais extremamente competentes, mas a estrutura ainda não é boa, eles não conseguem dar a devida atenção para cada processo. Então, quando o crime é cometido por alguém rico, essa pessoa tem todo tipo de assistência, tem condições de produzir todo tipo de prova, e o Judiciário não pode estar suprimindo meios legais de prova. O Juiz não pode indeferir um meio legal de prova, uma prova requerida tempestivamente e que seja um meio legal sem que haja uma razão para isso. Vigora o princípio da ampla defesa, a pessoa tem o direito de se defender, e as penas, ao mesmo tempo, não são tão graves quanto as de outros delitos.
O senhor falou várias vezes nas limitações que os Juízes têm na aplicação da lei penal, diferenças de entendimento. O que o senhor poderia sugerir de melhorias na estrutura do Tribunal de Justiça para atender essas questões criminais propriamente ditas. Há diferenças de Grupo para Grupo.
Questões criminais e cíveis também. Penso que essas administrações do Tribunal têm pensado bem as questões do Judiciário. A especialização é um caminho, embora ao mesmo tempo não seja tão democrática, porque o que faz a riqueza do Judiciário, do Direito, é justamente esse confronto de idéias, os entendimentos diferentes, o debate, mas parece que a realidade está nos impondo a conclusão de que isso passou a ser uma espécie de romantismo.
Preocupa-me muito o volume de serviço que tem atropelado os Juízes e tem, conseqüentemente, acarretado um trabalho não tão qualificado como se fazia em outros tempos. Hoje é praticamente impossível um Juiz fazer uma sentença ou produzir um acórdão mais elaborado em face do acúmulo do serviço. O Juiz não tem mais tempo para estudar. Eu cansei de tirar férias para ficar trabalhando, e assim tantos Juízes fazem. O tempo deles é todo dedicado ao julgamento dos processos, a Magistratura parece ser um sacerdócio, não se pode fazer mais nada, e há prejuízo para a família, inegavelmente.
O que eu tentaria fazer, mesmo dentro desse esquema da especialização, seria incentivar a qualidade dos julgados. Penso que o mínimo que se pode exigir de um Juiz é que ele leia o que as partes escreveram, o que os advogados alegaram e que ele estude as questões. Eu procuraria algum mecanismo que incentivasse esse lado, porque o Juiz, creio eu, jamais pode esquecer que, por trás da montoeira de papel que largam na frente dele todos os dias, existem pessoas. Cada processo, cada caso que se apresenta tem uma pessoa envolvida. Tu estás lidando com o destino das pessoas, com a liberdade das pessoas, tu tiras o filho, tu entregas o filho, tu tiras o patrimônio, tu dás o patrimônio, e isso não pode ser enfrentado de modo superficial.
Eu me orgulho muito do Judiciário do Rio Grande do Sul e dos Colegas que ainda conseguem manter um padrão aceitável, embora ele esteja diminuindo, apesar do volume desumano de serviço. Na Alemanha, por exemplo, cada Juiz tem no máximo 300 processos por ano. Aqui vejam com quantos processos cada Juiz lida. É impossível trabalhar assim. A litigiosidade é intensa demais, discute-se tudo no Judiciário, não há mais espaço para a razão, para conversações, não há espaço para o diálogo, tudo vai direto para o Judiciário. O Judiciário está encarregado de resolver todos os problemas.
Lembro que o Amilton Bueno de Carvalho (Desembargador), meu compadre, meu amigo, contou-me de um caso em que um sujeito ingressou no Judiciário processando a cartomante, para quem ele havia pago determinada quantia, porque ela havia prometido que ele deixaria de ser impotente e ele não deixou de ser impotente, então ingressou no Judiciário. Não é possível que isso venha para o Judiciário.
Como coibir isso?
Penso que isso é próprio de um sistema em que não há segurança legislativa, as leis e a Constituição mudam no Brasil todos os dias. A nossa democracia é ainda incipiente, nós passamos de um período em que não havia litígios, período de ditadura, quando os ditadores resolviam tudo, para um período de intensa litigiosidade, pela democracia nascente. As pessoas começaram a ver os seus direitos, só que estão buscando esses direitos talvez sem medida, sem procurar resolver o problema de outro modo.
E a Constituição, que completou 20 anos?
A melhor coisa da Constituição é o art. 5º.
Por que a decisão de se aposentar agora e o que o senhor está fazendo ou vai fazer a partir de agora?
Eu não gostaria de ter me aposentado porque adoro o que faço, gosto de julgar, sempre gostei, mas tenho quatro filhos. A minha filha é formada
Mais: o Conselhão – aliás, penso que fui um dos poucos Juízes do Estado a ser favorável ao controle externo, eu era a favor da criação do Conselho Nacional da Magistratura - proibiu os Juízes até de serem síndicos de condomínio, e eu queria ter o direito de fazer alguma coisa nas horas em que eu não estava trabalhando para o Judiciário, como, por exemplo, ser Vice-Presidente do Grêmio. Se forem estudar o Estatuto do Grêmio, não há incompatibilidade alguma com a Magistratura, ele não administra nada, só vota as questões, faz reuniões e vota, não tem nenhuma atividade executiva, mas até isso nos proibiram.
Então, para ajudar os meus filhos e poder fazer as coisas que quero, fui obrigado a me aposentar e pretendo advogar também.
EXPEDIENTE
Entrevista concedida a Adriana Arend e João Batista Santafé Aguiar
Degravada e revisada pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJRS
Assessora-Coordenadora de Imprensa: Adriana Arend
imprensa@tj.rs.gov.br
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