Sonegação fiscal não consiste em infração antecedente da lavagem
Com as alterações na Lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro), introduzidas pela Lei 12.683/12, o referencial antecedente passou a ser qualquer infração penal. Todavia, as mudanças impostas pelo legislador merecem maior reflexão, em especial quando o delito anterior é a sonegação fiscal, contida na Lei 8.137/90.
Isso porque a lavagem de capitais possui como elemento objetivo do delito a ocultação ou dissimulação de natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, nos termos do artigo 1º da Lei 9.613/98.
O crime de lavagem possui independência, na qual ocorre denúncia sem sequer haver o processo da infração penal antecedente (artigo 2º da lei). Todavia, em relação ao delito antecedente de sonegação fiscal, obrigatoriamente, necessitaria do lançamento definitivo do tributo, antes disso não se falaria em lavagem de dinheiro.
Esse seria o pressuposto material mínimo para o processo de lavagem, a fim de que se evitasse eventual sobreposição de crimes, inclusive com o ingresso de mais de uma denúncia, sobre uma só conduta típica.
Por outro lado, a sonegação fiscal possui como tipo objetivo o ato de suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as condutas descritas nos incisos do artigo 1º da Lei 8.137/90.
A discussão enfrentada é saber se o crime de sonegação fiscal poderia desencadear uma conduta de lavagem de capitais. Isso porque, na lavagem, pressupõe-se uma conduta criminosa, na qual há proveitos ilícitos que assumem aparência lícita diante dos mecanismos utilizados pelo agente “lavador”.
Na sonegação fiscal não haveria origem ilícita do bem ou dinheiro “sujo”, pois em tese o valor sonegado apenas permaneceria com o seu dono, não havendo diferenciação do suposto sonegado com o restante do patrimônio. Por isso, não haveria a consumação do delito de lavagem, frente à ausência de proveitos ilícitos com aparência lícita.
A redação da exposição de motivos da Lei 9.613/98, no nº 34, fazia referência justamente a essa situação, ou seja, crimes que não agregam patrimônio ao agente, que são oriundos de recursos próprios e que não possuem origem ilícita não podem ser tidas como condutas criminosas antecedentes da lavagem de capitais.
O crime previsto no artigo 1º da Lei 9.613/98 exige que os recursos lavados sejam provenientes de infrações penais. Contudo, diversamente dos delitos como tráfico de drogas, gestão fraudulenta de instituição financeira e fraudes em geral, a sonegação fiscal não produz recursos. Evita, sim, a diminuição com impostos de recursos provenientes da atividade da empresa sonegadora. Nessas condições, não haveria lavagem do que não é produto de atividade criminosa.[1]
Portanto, um dos argumentos contrários à possibilidade de sonegação fiscal antecedente da lavagem é relacionado ao objeto material, já que sua origem não é ilícita, não podendo o agente responder pela omissão do não pagamento do tributo. Assim, a fraude fiscal consistente em evitar o pagamento do tributo é um delito de omissão, que por consequência não gera bem algum ao sonegador[2].
O motivo é que não se poderia estabelecer relação causal entre a ação omitida, que seria o não pagamento do tributo, e os bens já incorporados no patrimônio do sujeito em virtude de uma ação positiva anterior à constituição do delito. Portanto, o lucro de uma atividade lícita não deveria se tornar ilícita pelo simples fato de não ter sido tributada, nem sequer porque se ocultou com a finalidade de evitar o pagamento do tributo.[3]
A conduta típica possui argumento contrário, também, em relação à violação ao princípio do ne bis in idem. Isso porque geralmente quem comete fraude no pagamento de tributos à Fazenda pública, converte, oculta e encobre a origem de bens e valores, situações típicas da lavagem de capitais. Assim, sempre que houvesse o delito fiscal haveria necessariamente uma pena adicional do crime de lavagem de capitais. Entretanto, os valores discutidos já teriam sido adquiridos antes mesmo da fraude fiscal.[4]
A lei de lavagem, na sua redação anterior, considerava crime a utilização do bem, direito ou valor, com aparência de licitude, desde que o sujeito ativo soubesse da origem criminosa. O crime, então, consistia no fato de o sujeito aderir ao processo de lavagem, sabedor da origem do objeto da lavagem. Na redação atual, foi excluído o “que sabe” ser proveniente de infração penal. Assim, a mera utilização de um bem, direito ou valor proveniente de infração penal não configura o crime de lavagem, já que ninguém pratica o delito sem aderir a tal processo.[5]
Não se deve falar em ocultação na lavagem se não ficar demonstrado que o agente oculta o dinheiro, com o objetivo de reintroduzi-lo na economia legal, após alguma dissimulação que vai lhe conferir aparência de licitude. Do contrário, por exemplo, será crime esconder o dinheiro embaixo da cama, após um roubo. Todavia, o legislador não pune a mera ocultação do objeto do roubo, mas apenas aquela que integra um processo de lavagem. Sem integrar esse processo, estar-se-ia diante de mero exaurimento da infração anterior.
Da mesma forma, não há como punir a mera utilização do dinheiro que provém de infração penal. De início, porque não se pune a utilização de bem, direito ou valor “sujo”, mas apenas daquele que possui aparência de licitude, ou seja, que passou por um processo dissimulatório, sem o qual não poderia ser inserido na economia; não poderia ser considerado “lavado”.[6]
Pode-se dizer que o exaurimento não configura um novo crime, funciona como post factum não punível, que apenas exaure um delito já consumado ainda que encontre tipificação autônoma na legislação penal, que atinja novo bem jurídico ou que gere vantagem ao agente. Situação diversa levaria à dupla punição a um mesmo fato delituoso. Conclui-se que o agente atingiu a sua finalidade na conduta criminosa, sendo uma espécie final e esgotamento do iter criminis.[7]
Seguindo a teoria da equivalência das condições e recorrendo à fórmula da conditio sine qua non para a sua aplicação, pode-se afirmar que um bem procede de uma atividade delitiva anterior quando, suprimindo mentalmente tal atividade anterior, o bem desapareceria na sua específica configuração. Portanto, a atividade criminosa anterior é causa quando repercute direta ou indiretamente na sua existência, na sua composição material, valor, propriedade, posse ou guarda.[8]
No entanto, a mera aplicação desta teoria pode estender em demasia a abrangência da norma penal, especialmente nos casos nos quais há mescla de valores lícitos e ilícitos. Para evitar a expansão desarrazoada, parece necessária uma avaliação da relação de bens com o antecedente sob a perspectiva da proporcionalidade, pautada na ideia da contaminação parcial. Os bens oriundos da mistura de capital lícito com ilícito somente são contaminados na proporção do valor de dinheiro sujo nela envolvido.[9]
Tal situação é importante diante de algumas infrações antecedentes praticadas sobre dinheiro ou valores, como é o caso dos crimes fiscais. Nesses casos, o objeto do crime anterior é preexistente ao delito e não produto deste, pelo que não pode ser considerado objeto da lavagem. Aquele que deixa de pagar tributos por fraude, já tem posse ou propriedade do dinheiro, que não é criado pelo delito praticado, a não ser a quantidade sonegada ou preservada.[10]
Assim, se durante a investigação penal for identificada razoavelmente a parte dos bens do patrimônio do sonegador que constitui a parcela fraudada, poderá haver responsabilização pela lavagem. Igualmente, não poderia haver presunção automática, mas sim uma soma de ações do agente fraudador que levasse a concluir pela lavagem de capitais.[11]
O que se pode dizer que o produto da lavagem de dinheiro será apenas a parcela sonegada e não a totalidade do valor que gera a obrigação fiscal. Essa sonegação pode ser pelo recebimento de devoluções de valores pelo fisco ou pela manutenção de valores que deveriam ter sido pagos, sempre por meio das condutas típicas de crimes tributários.[12]
Quanto à possibilidade de concurso entre o crime contra a ordem tributária e a lavagem de capitais, José Paulo Baltazar Júnior faz referência a duas posições. A primeira que não há consunção, porque a ocultação e a dissimulação da natureza e origem dos valores não são meios necessários para a realização do crime contra a ordem tributária. E a segunda, a conduta de omitir e prestar declaração falsa à fiscalização tributária que serve como meio necessário para a lavagem de dinheiro é absorvida por essa, aplicando-se o princípio da consunção.[13]
Ao final, conclui-se que, havendo a diferenciação da parte sonegada do patrimônio do agente, já que pode ter havido uma mistura de valores e bens lícitos e ilícitos, poderá incidir a lavagem de capitais. Para isso, deve se extrair apenas a parte fraudada somado ao fato de o fraudador ter cometido atos de ocultação e dissimulação desses bens ou valores sonegados, numa ação para torná-los com aparência lícita.
[1] SALOMÃO NETO, Eduardo. Sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, um casal disfuncional. Boletim
nov. 2012. Disponível em:
http://www.levysalomao.com.br/publicacoes/Boletim/sonegacao-fiscal-e-lavagem-de-dinheiro-um-casal-disfuncional.
Acesso em 03/11/2014.
[2] OLMEDA, Araceli Manjón-Cabeza. Delito fiscal como delito antecedente de conductas de blanqueo de capitales. Revista
de derecho penal, 2012. Disponível em:
http://portaljuridico.lexnova.es/articulo/JURIDICO/153261/delito-fiscal-como-delito-antecedente-de-conductas-de-blanqueo-de-capitales.
Acesso em 11/02/2014.
[3] CORDERO, Isidoro Blanco. El delito fiscal como actividad delictiva previa Del blanqueo de capitales. Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, 2011, n.13-01, p.
01:1-01-46. Disponível em:
http://criminet.ugr.es/recpc/13/recpc13-01.pdf. Acesso em 20/10/2014, p.
01:18.
[4] CORDERO, Isidoro Blanco. El delito fiscal como actividad delictiva previa Del blanqueo de capitales. Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, 2011, n.13-01, p.
01:1-01-46. Disponível em:
http://criminet.ugr.es/recpc/13/recpc13-01.pdf. Acesso em 20/10/2014, p.
01:18.
[5] VILARDI, Celso Sanchez. A ciência da infração anterior e a utilização do objeto da lavagem. Boletim IBCCRIM. São Paulo: n. 237, p. 17-18, ago. 2012.
[6] VILARDI, Celso Sanchez. A ciência da infração anterior e a utilização do objeto da lavagem. Boletim IBCCRIM. São Paulo: n. 237, p. 17-18, ago. 2012.
[7] BONACCORSI, Daniela Villani. A atipicidade do crime de lavagem de dinheiro: análise crítica da Lei 12.684/12 a partir do emergencialismo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 180.
[8] CORDERO, Isidoro Blanco. El delito fiscal como actividad delictiva previa Del blanqueo de capitales. Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, 2011, n.13-01, p.
01:1-01-46. Disponível em:
http://criminet.ugr.es/recpc/13/recpc13-01.pdf. Acesso em 20/10/2014, p.
01:22.
[9] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro:
Aspectos penais e processuais penais: Comentários à Lei 9.613,98, com
alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
p. 70.
[10] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro:
Aspectos penais e processuais penais: Comentários à Lei 9.613,98, com
alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
p. 71.
[11] VILLARREAL. Alberto Muñoz. El delito de blanqueo de capitales y los delitos contra la hacienda pública.
Madrid: Revista jurídica de Castilla y León, nº. 34, set. 2014, p.
10-11. Disponível em:
http://www.munoz-arribas.com/wp-content/uploads/2014/12/EL-DELITO-DE-BLANQUEO-DE-CAPITALES.pdf.
Acesso em 14/11/14.
[12] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro:
Aspectos penais e processuais penais: Comentários à Lei 9.613,98, com
alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
p. 72.
[13] BALTAZAR JR, José Paulo. Crimes Federais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 419.
Rodrigo
Silveira da Rosa é advogado, mestrando em Ciências Criminais pela
PUC-RS, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela
Unisinos-RS. É membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS.
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2014, 8h17
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