PROVA EMPRESTADA E GARANTIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO – JURISPRUDÊNCIA DO STJ:
Em regra, a prova que será
utilizada pelas partes e pelo juiz é produzida no próprio processo. No
entanto, a admissão de uma prova emprestada – produzida em outro processo –
pode ser justificada pela necessidade de otimização, racionalidade e eficiência
da prestação jurisdicional.
O Código de Processo Civil (CPC) trata, em
seu artigo 372, da possibilidade de o magistrado validar o
empréstimo, dispondo que "o juiz poderá admitir a utilização de prova
produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado,
observado o contraditório".
Para a ministra do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Nancy Andrighi, "é inegável que a grande valia da prova
emprestada reside na economia processual que proporciona, tendo em vista que se
evita a repetição desnecessária da produção de prova de idêntico conteúdo, a
qual tende a ser demasiado lenta e dispendiosa, notadamente em se tratando de
provas periciais na realidade do Poder Judiciário brasileiro".
Segundo ela, a economia processual decorrente
da utilização da prova emprestada também gera aumento da eficiência, na medida
em que garante a obtenção do mesmo resultado útil, em menor período de tempo,
em consonância com a garantia constitucional da duração razoável do processo,
inserida na Constituição Federal pela EC 45/2004.
Requisito primordial
Em 2014, no julgamento do EREsp
617.428, por unanimidade, a Corte Especial estabeleceu que a prova
emprestada não pode se restringir a processos em que figurem partes idênticas,
sob pena de se reduzir excessivamente sua aplicabilidade, sem justificativa
razoável para tanto.
"Independentemente de haver identidade
de partes, o contraditório é o requisito primordial para o aproveitamento da
prova emprestada. Portanto, assegurado às partes o contraditório sobre a prova,
isto é, o direito de se insurgir contra a prova e de refutá-la adequadamente,
afigura-se válido o empréstimo", observou a relatora, ministra Nancy
Andrighi.
Os recorrentes pediam que a prova pericial
emprestada não fosse admitida, em razão de não figurarem as mesmas partes no
processo em que ela foi produzida. O pedido não foi acolhido pelo colegiado,
uma vez que não se contestou o conteúdo da prova, nem se demonstrou qualquer
prejuízo advindo do seu aproveitamento.
Para a relatora, a parte deixou, por opção
própria, "de exercer o seu direito a impugnar a prova emprestada, não
havendo qualquer mácula ao princípio do contraditório no presente processo, de
modo que o empréstimo deve ser preservado".
Valoração da prova
A Sexta Turma empregou o mesmo entendimento
ao negar provimento ao REsp
1.561.021, no qual se discutia a legitimidade de prova emprestada, tendo o
recorrente alegado que as declarações de uma testemunha – prestadas na
qualidade de ré durante interrogatório em outro processo-crime – não foram
produzidas em ação entre as mesmas partes nem foram obtidas com respeito ao
contraditório e ao devido processo legal.
O autor do voto que prevaleceu no julgamento,
ministro Nefi Cordeiro, lembrou que as provas no processo penal só exigem forma
quando a lei o prevê; caso contrário, devem apenas ser submetidas às garantias
do contraditório e da ampla defesa.
Ao considerar legítimo o empréstimo no caso
em análise, o ministro ressaltou que até seria possível discutir os critérios
de valoração da prova: se o depoimento teria o valor de um testemunho colhido
no mesmo processo, sob o contraditório das mesmas partes; se teria o valor de
um informante, ou de um documento, ou, ainda, se a prova emprestada valeria
como um mero indício. "Mas válida essa prova é, não violando nenhuma norma
legal, e não violando tampouco o princípio constitucional do
contraditório", enfatizou.
Dados fiscais
Em novembro de 2019, o plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE 1.055.941 – com repercussão geral
–, decidiu que é legítimo o compartilhamento com o Ministério Público e as
autoridades policiais, para fins de investigação criminal, da integralidade dos
dados bancários e fiscais do contribuinte obtidos pela Receita Federal e pela
Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf), sem a necessidade de
autorização prévia do Poder Judiciário.
Anteriormente, a Primeira Turma do STF já
havia entendido que seria possível a utilização das informações obtidas pelo
fisco, por meio de regular procedimento administrativo fiscal, para fins de
instrução processual penal. A turma se baseou no julgamento do RE 601.314 – também com repercussão geral –, no qual o
plenário do STF declarou a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, considerando
dispensável a autorização judicial para que a Receita coletasse informações
bancárias de contribuintes.
Seguindo essa orientação, em março de 2018, a
Sexta Turma do STJ alinhou a jurisprudência com a da Primeira Turma do STF e
negou a ordem no HC
422.473, no qual o paciente alegava a ilicitude de prova que ensejou a
deflagração da ação penal contra ele, pois esta se originou do
compartilhamento, com o Ministério Público, de dados bancários obtidos
diretamente pela Receita Federal, sem autorização judicial.
O paciente e outro sócio de uma empresa de
engenharia foram acusados de suprimir tributos devidos à Fazenda Nacional,
mediante omissão de rendimentos provenientes de valores creditados em
contas-correntes de titularidade da firma.
O relator do habeas corpus no STJ, ministro
Sebastião Reis Júnior, aplicou o entendimento do STF e considerou que não houve
ilicitude das provas que embasaram a denúncia.
"Assim como o sigilo é transferido, sem
autorização judicial, da instituição financeira ao fisco e deste à
Advocacia-Geral da União, para cobrança do crédito tributário, também o é ao
Ministério Público, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte
lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos, se constate
fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária", disse.
Processo administrativo
Outra posição importante da jurisprudência do
STJ é a possibilidade de utilizar provas emprestadas de inquérito policial e de
processo criminal na instrução de Processo Administrativo Disciplinar (PAD),
desde que assegurados o contraditório e a ampla defesa. O entendimento está
previsto na Súmula
591/STJ, aprovada em 2017 pela Primeira Seção.
Para a jurisprudência do STJ, é possível
utilizar interceptação telefônica emprestada de processo penal no PAD, desde
que devidamente autorizada pelo juízo criminal – responsável pela preservação
do sigilo de tal prova –, além de observadas as diretrizes da Lei
9.296/1996.
No MS
17.534, um dos precedentes que embasaram a súmula, o ministro Humberto
Martins – relator do recurso de um policial rodoviário federal que teve a
demissão decretada com base em provas de ação penal – reconheceu a
possibilidade de uso de interceptações telefônicas na forma de provas
emprestadas.
O ministro destacou que, no caso, foram
observados os critérios necessários para a utilização desse tipo de prova: a
devida autorização judicial e a oportunidade de o servidor contraditar o seu
teor ao longo da instrução.
Cooperação internacional
O compartilhamento de provas também pode
extrapolar os limites do território nacional. Ao analisar a utilização de prova
produzida na Suíça em processo penal no Brasil, na APn
856, a ministra Nancy Andrighi explicou que a cooperação jurídica
internacional é o instrumento por meio do qual um Estado – com base em acordos
bilaterais, tratados regionais e multilaterais ou na promessa de reciprocidade
– solicita ou recebe de outro Estado subsídios para a instrução de procedimento
jurisdicional de sua competência.
Ela lembrou a existência de tratado de
cooperação em matéria penal firmado pelo Brasil e pela Suíça (Decreto 6.974/2009) e ressaltou que o uso de prova
estrangeira em processo em curso no território nacional deve observar a regra
prevista no artigo 13 da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (LINDB).
O dispositivo estabelece que "a prova
dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar,
quanto ao ônus e aos meios de produzir-se". Segundo a relatora, "as
provas obtidas por meio de cooperação internacional em matéria penal devem ter
como parâmetro de validade a lei do Estado no qual foram produzidas".
Na ação penal no STJ, o acusado sustentou a
ilegalidade de todas as provas produzidas contra ele, pois seriam derivadas de
provas declaradas ilícitas pela Suíça, e disse que o envio delas ao Brasil só
foi autorizado porque a legislação daquele país – ao contrário da brasileira –
permite a utilização de provas declaradas ilícitas, após um juízo de
ponderação.
A relatora ressaltou que o encaminhamento das
provas ao Brasil somente foi admitido em razão de as provas serem legítimas,
conforme o parâmetro de legalidade da Suíça. "Desse modo, como a prova foi
considerada admissível segundo o padrão legal suíço, não há de ser questionada
a validade de seu envio aos órgãos responsáveis pela persecução penal no
Brasil", afirmou.
Nancy Andrighi lembrou ainda que a introdução
desses elementos de informação no processo penal em curso no território
nacional depende de a forma de sua obtenção não ter violado a ordem pública, a
soberania nacional e os bons costumes brasileiros, em interpretação analógica
da previsão do artigo
17 da LINDB.
Cartas rogatórias
Em 2017, o Brasil aderiu à Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em
Matéria Civil ou Comercial. Promulgado pelo Decreto 9.039/2017, o acordo facilita a colheita de provas
entre o Brasil e dezenas de outros países. A convenção destaca alguns
temas nos quais cada país pode apresentar reservas e declarações para adaptá-la
aos termos da sua própria legislação.
Entre elas, no artigo 23, o Brasil declara
que não cumprirá as cartas rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito
de obter o que é conhecido nos países do Common Law (sistema jurídico
diverso do brasileiro) pela designação de pre-trial discovery of documents.
Esse procedimento prévio de produção de provas é conduzido diretamente pelas
partes, com nenhuma – ou quase nenhuma – intervenção judicial.
Responsável por avaliar e conceder exequatur às
cartas rogatórias, compete ao STJ interpretar a aplicação do artigo 23 e
estabelecer um posicionamento quanto à sua abrangência, às limitações,
declarações e reservas.
Relevância da prova
Ao analisar a CR
13.559, o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha,
concedeu exequatur e determinou o compartilhamento de provas em poder
da Procuradoria da República no Distrito Federal para instrução de ação na
Justiça americana.
Em recurso, a parte investigada sustentou que
a decisão afrontava o artigo 23 da Convenção de Haia, pois o pre-trial
discovery of documents seria incompatível com o ordenamento jurídico
brasileiro.
O presidente do STJ afirmou que a ressalva
feita pelo artigo 23 não configura impedimento à realização da diligência
solicitada pela Justiça estrangeira. Em suas razões de decidir, o ministro
destacou o parecer do Ministério Público Federal (MPF), segundo o qual essa
reserva "não deve ser entendida como vedação absoluta à produção de provas
no estrangeiro".
"Isso significaria negar o direito
fundamental de obter a devida prestação jurisdicional. O que deve ser entendido
é que a autorização para a produção da prova no estrangeiro exige maior cuidado
para que, em cada caso, seja examinada a relevância e a pertinência da prova
rogada, afastando assim o pedido abusivo ou meramente exploratório",
afirmou o MPF.
O objetivo do artigo 23 – afirmou o parecer –
não é bloquear a busca de provas no estrangeiro, mas evitar a coleta abusiva da
prova, especialmente quando dirigida contra particulares.
No caso em análise, o presidente do STJ
observou que "o objeto da presente carta rogatória não atenta contra a
soberania nacional, a dignidade da pessoa humana ou a ordem pública".
Fonte: STJ.
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