TRANSAÇÃO PENAL EM CRIME DE LESÃO CORPORAL CULPOSA – PERDA DE OBJETO DO HABEAS CORPUS – OBRIGATORIEDADE DE ANÁLISE DO MÉRITO JUNTO AO TRIBUNAL – INFORMATIVO Nº. 964 DO STF:
A realização de acordo
de transação penal não enseja a perda de objeto de habeas corpus anteriormente
impetrado.
Com base nesse
entendimento, a Segunda Turma concedeu a ordem de habeas corpus para determinar
que o tribunal de justiça analise o mérito da impetração lá formulada.
No caso, de acordo com
a inicial acusatória, o paciente foi denunciado pela prática de lesão corporal
culposa, com pedido de reparação de danos, por ter agido de forma negligente e
descumprido as regras técnicas de sua profissão.
Após o recebimento da
denúncia, o Ministério Público ofereceu transação penal, medida aceita pelo
paciente.
A defesa, no entanto,
já havia impetrado habeas corpus no tribunal, apontando a inépcia da denúncia e
a ausência de justa causa para a ação penal. Todavia, em razão da celebração do
referido acordo, o habeas corpus foi julgado prejudicado.
No presente writ, a
defesa alega que o habeas corpus impetrado na origem deveria ter sido
conhecido, pois remanesce o interesse na apreciação das teses de inépcia da
denúncia e de ausência de justa causa, mesmo tendo sido celebrado o acordo de
transação penal.
A Turma afirmou que, em
razão dos riscos e problemas inerentes ao sistema negocial, o controle
realizado pelo julgador deve também abranger certa verificação sobre a
legitimidade da persecução penal, visto que o Estado não pode autorizar a
imposição de uma pena em situações ilegítimas, como, por exemplo, em quadros de
manifesta atipicidade da conduta ou extinção da punibilidade do imputado.
Assim, não se pode
permitir que o aceite à transação penal inviabilize o questionamento judicial à
persecução penal. Ou seja, não se pode aceitar que um habeas corpus, que, entre
outros requerimentos, aponta a atipicidade da conduta, seja declarado
prejudicado em razão do aceite à barganha penal.
Ainda que os acordos
penais pressuponham, corretamente, a voluntariedade do réu, ou seja, a sua
vontade não coagida no sentido de aceitar a imposição da pena proposta, há
relevantes críticas ao sistema de justiça negocial, em razão de possíveis
abusos que viciam a voluntariedade do réu e podem ocasionar, inclusive, o
aceite ao acordo por pessoas inocentes.
Assinalou que se
potencializa o risco de um cenário de pressões e coerções, que pode ocasionar a
fragilização da voluntariedade, o que, muitas vezes, não é devidamente
analisado pelo Judiciário, se ausente um mecanismo de devido controle do
acordo.
Embora o sistema penal
negocial possa acarretar aprimoramentos positivos em certas hipóteses, a
barganha no processo penal inevitavelmente gera riscos consideráveis aos
direitos fundamentais do imputado e deve ser estruturada de modo limitado, para
evitar a imposição de penas pelo Estado de forma ilegítima.
Nesse sentido, o
controle judicial sobre o acordo é medida fundamental para a proteção efetiva
de direitos fundamentais, de modo a se autorizar o exercício do poder punitivo
estatal somente em casos legítimos para tanto. Deve-se, então, assentar a
abrangência e os critérios para tal juízo de homologação da barganha penal.
Ainda que o réu se
conforme com a acusação e aceite a imposição da pena com o benefício proposto,
não se pode aceitar que o poder punitivo estatal seja exercido sem o devido
controle judicial. Por isso, em todos os casos, tanto em colaboração premiada
como em transação penal ou suspensão condicional do processo há a submissão
para homologação judicial.
O controle judicial não
pode ser meramente formal e mecânico, ao passo que a imposição de uma pena pelo
Estado, ainda que consentida pelo imputado, deve ocorrer de modo legítimo e em
conformidade com os direitos fundamentais previstos constitucional e
convencionalmente.
Por óbvio, tal análise
se dará de modo compatível com o momento em que ocorre e os limites cognitivos
da fase preliminar da persecução penal. Ou seja, não se espera que o julgador
busque fundamentar sua decisão em provas além de qualquer dúvida razoável, o
que seria necessário para uma sentença condenatória ao final do processo
regular.
Contudo, na homologação
do acordo penal, como a transação penal, o julgador precisa realizar controle
sobre a legitimidade da persecução penal, de modo que casos de manifesta
atipicidade da conduta narrada, extinção da punibilidade do imputado ou
evidente inviabilidade da denúncia por ausência de justa causa acarretem a não
homologação da proposta.
Pela própria lógica da
legislação atual, a transação penal somente pode ser oferecida se não for caso
de arquivamento, ou seja, se houver potencial oferecimento de denúncia apta a
ensejar o início do processo penal. Não se pode admitir que a transação penal
possa impor obrigações a imputado que nem poderia ser submetido à persecução
penal por ausência de justa causa ou atipicidade da conduta, por exemplo.
A celebração do acordo,
por si só, não afasta o interesse do imputado no habeas corpus. Primeiramente,
o descumprimento das cláusulas da transação penal permite o prosseguimento do
processo. Além disso, a transação penal somente pode ser oferecida uma vez a
cada cinco anos, de maneira a demonstrar interesse do paciente em sua
desconstituição, por meio de eventual concessão da ordem para o trancamento do
processo. Por fim, inexiste qualquer disposição legal que imponha a desistência
a recursos ou ações em andamento, tampouco determine a renúncia ao direito de
acesso à Justiça.
A Turma registrou que,
conquanto a Lei 9.099/1995 determine seja a transação ofertada antes da
denúncia, o que, em tese, significaria ausência de ação, neste caso concreto, a
denúncia havia sido oferecida e recebida pelo Juízo de origem, de modo a
ensejar pretensão legítima a buscar o trancamento do processo, ainda que se
tenha anulado o ato precursor do processo.
Concluiu que, ainda que
o cenário fosse diverso, o habeas corpus é meio legítimo para impugnar a
imposição de pena pelo Estado, em casos de manifesta ilegalidade. O ato de
homologação do acordo é momento em que o juiz de primeiro grau deve realizar o
controle sobre a sua legalidade e a legitimidade da potencial persecução penal.
Portanto, tal ato igualmente pode ser objeto de habeas corpus para o controle
por tribunal superior.
O ministro Edson Fachin
concedeu a ordem por outro fundamento. Pontuou que o habeas corpus
anteriormente impetrado não pode ser implicitamente afetado por uma transação
penal sem cláusula geral de renúncia.
HC 176785/DF, rel. Min.
Gilmar Mendes, julgamento em 17.12.2019. (HC-176785)
Fonte: STF.
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