Acordo de não persecução penal: a novidade do Pacote Anticrime interpretada pelo STJ:
Uma das principais inovações inseridas no
Código de Processo Penal (CPP) pela Lei 13.964/2019 (Pacote
Anticrime), o acordo de não persecução penal pode ser definido como uma espécie
de negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público (MP) e o
investigado, assistido por seu defensor. Nele, as partes negociam cláusulas a
serem cumpridas pelo acusado, que, ao final, será favorecido pela extinção da punibilidade.
O acordo está previsto no artigo 28-A do CPP:
"Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e
circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e
com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor
acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime".
A relevância e a dimensão desse
instrumento – ainda recente no ordenamento jurídico brasileiro – podem ser
estimadas pelas palavras do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Rogerio Schietti Cruz. No julgamento do HC 657.165, ele
definiu o instituto como "uma maneira consensual de alcançar resposta
penal mais célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da
obrigatoriedade da ação penal,
com inexorável redução das demandas judiciais criminais".
Segundo Schietti, o acordo de não
persecução penal não se propõe especificamente a beneficiar o réu, mas sim a
Justiça criminal de forma integral, visto que tanto ele quanto o Estado
renunciam a direitos ou pretensões em troca de alguma vantagem. O Estado –
explicou o ministro – não obtém a condenação penal em troca de antecipação e
certeza da resposta punitiva. Já o réu deixa de provar sua inocência, "em
troca de evitar o processo, suas cerimônias degradantes e a eventual sujeição a
uma pena privativa de liberdade".
Cumprimento de condições e confissão são
diferenciais do acordo
No mesmo voto, Schietti enumerou as
principais diferenças do acordo de não persecução penal em relação a outras
formas de Justiça penal negociada, como a transação penal e
a suspensão condicional do processo.
"Enquanto na transação
penal o acordo é de cumprimento de penas (não privativas de
liberdade) e no sursis processual
já há um processo instaurado, no acordo de não persecução penal se acerta o
cumprimento de condições (funcionalmente equivalentes a penas)", detalhou
o ministro.
A outra diferença apontada é que, ao
contrário do que ocorre em relação aos dois outros institutos, o acordo de não
persecução penal pressupõe, como requisito para sua celebração, a prévia
confissão do crime por parte do investigado.
Ministério Público já propôs mais de 21
mil acordos de não persecução penal
Antes do Pacote Anticrime, o acordo de
não persecução penal era previsto na Resolução 181/2017 do Conselho
Superior do Ministério Público. No entanto, foi com a
inclusão no sistema processual penal que o instrumento consensual se consolidou
como alternativa à propositura da ação.
Conforme o Ministério Público Federal
(MPF), de 2019 a 2022 foram propostos 21.466 acordos em todo o Brasil. Quanto
aos crimes com maior incidência do instituto, um levantamento da 2ª Câmara de
Coordenação e Revisão do MPF, de 2021, revelou que os mais
comuns são contrabando ou descaminho, estelionato majorado, uso de documento
falso, moeda falsa, falsidade ideológica, além de crimes contra o meio ambiente.
Apesar de ser um número expressivo, o
ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca alertou, em apresentação na Rede de Inteligência
e Inovação (Reint1), do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1),
que a quantidade de processos resolvidos a partir do modelo negocial de
resolução de conflitos no âmbito da esfera penal ainda é baixo. Ao citar dados
do Conselho Nacional do Ministério Público, ele destacou que somente 2,6% dos
processos foram decididos por acordo de não persecução penal, o que representa
um total de 7.717 processos solucionados no modelo de Justiça penal negociada.
A introdução recente do instituto no
sistema processual penal e o crescente interesse das partes vêm suscitando a
manifestação do STJ em diversos julgados. Alguns dos posicionamentos mais
relevantes estabelecidos na jurisprudência da corte dizem respeito à
possibilidade de sua aplicação retroativa e ao momento correto de oferecimento
do acordo de não persecução penal.
Falta de confissão no inquérito não
impede MP de propor acordo de não persecução penal
Em agosto de 2022, a Sexta Turma do
tribunal entendeu que a falta de confissão do autuado,
durante o inquérito policial, não impede que o MP analise o oferecimento do
acordo de não persecução penal.
O relator do caso, ministro Rogerio
Schietti Cruz, observou que o acusado estava sem advogado no interrogatório e
preferiu ficar em silêncio, sem tomar conhecimento da possibilidade de celebrar
o acordo.
Schietti avaliou que a exigência de
confissão na fase policial poderia levar a uma autoincriminação antecipada,
apenas com base na esperança de oferecimento do acordo, o qual – segundo o
ministro – poderá não ser proposto em razão da falta de requisitos subjetivos
ou de outro motivo, conforme a avaliação do MP.
"Além de, na enorme maioria dos
casos, o investigado ser ouvido pela autoridade policial sem a presença de
defesa técnica e sem que tenha conhecimento sobre a existência do benefício
legal, não há como ele saber, já naquela oportunidade, se o representante do
Ministério Público efetivamente oferecerá a proposta de acordo ao receber o inquérito relatado",
disse o magistrado.
Não se admite retroação do acordo de não
persecução penal se a denúncia já
foi recebida
No julgamento do HC 628.647, a
Sexta Turma do STJ estabeleceu, por maioria, a possibilidade de aplicação retroativa
do acordo de não persecução penal, desde que a denúncia não tenha sido recebida.
Para o colegiado, uma vez iniciada a persecução penal em juízo, não há como
retroceder no andamento processual.
Na ocasião, os ministros negaram o pedido
da Defensoria Pública de Santa Catarina para que fosse oferecido o acordo de
não persecução penal a um homem preso em flagrante por portar armamentos e
munições de uso restrito, antes de a nova lei entrar em vigor.
Autora do voto que prevaleceu no
julgamento, a ministra Laurita Vaz considerou que "por mais que se trate
de norma de conteúdo híbrido, mais favorável ao réu – o que não se discute –, o
deslinde da controvérsia deve passar pela ponderação dos princípios tempus regit actum e
da retroatividade da lei penal benéfica, sem perder de vista a essência da
inovação legislativa em questão e o momento processual adequado para sua
incidência".
No entendimento da relatora, a lei nova
mais benéfica deve retroagir para alcançar aqueles crimes cometidos antes da
sua entrada em vigor. Por outro lado, "há de se considerar o momento
processual adequado para perquirir sua incidência, sob pena de se desvirtuar o
instituto despenalizador", ponderou.
Efeitos retroativos têm precedentes no
STJ, no STF e em enunciado do MP
Circunstância semelhante foi analisada
pela Quinta Turma no julgamento do HC 607.003, de
relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca. O colegiado não conheceu do
pedido por entender que o acordo de não persecução penal se aplica a fatos
ocorridos antes da Lei 13.964/2019, mas desde que não recebida a denúncia.
A decisão refletiu posicionamento já firmado pelo STF no HC 191.464.
No caso dos autos, a discussão acerca da
aplicação do acordo só ocorreu na fase da apelação. A
Lei 13.964/2019 não estava em vigor no momento do recebimento da denúncia,
o que impede a incidência do instituto.
O relator também citou uma decisão do
ministro Felix Fischer, proferida em petição no AREsp 1.668.089,
de junho de 2020. O então decano do
STJ salientou que o Enunciado 20,
formulado pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais por meio de uma
comissão especial, trata da retroatividade do artigo 28-A do CPP, nos seguintes
termos: "Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da
vigência da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia".
Judiciário não pode determinar que MP
ofereça o acordo de não persecução penal
No RHC 161.251, a
Quinta Turma estabeleceu que é competência exclusiva do MP a
possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal,
não cabendo ao Poder Judiciário determinar ao órgão acusador que o oferte.
Nesse julgado, o impetrante havia sido
denunciado por corrupção ativa, tendo o MPF se manifestado pela impossibilidade
de celebração do acordo. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), um habeas corpus foi
indeferido e, no STJ, a defesa alegou que seria possível a intervenção do Poder
Judiciário com base na ausência de fundamentação idônea por parte do MPF para o
não oferecimento do acordo.
"Não há ilegalidade na recusa do
oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o
representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência
dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo", apontou
o ministro.
Por fim, Ribeiro Dantas afirmou que a
possibilidade de oferecimento do acordo é conferida exclusivamente ao MP, não
constituindo direito subjetivo do investigado.
MP não precisa intimar acusado para que
recorra sobre cabimento do acordo
Em outro julgamento relevante da Quinta
Turma (REsp 1.948.350),
em novembro de 2021, foi definido que o MP não precisa intimar o acusado para
que este possa recorrer da decisão que entendeu pelo não cabimento do acordo de
não persecução penal.
Na origem do caso, o investigado foi
denunciado pelo crime de descaminho, tendo o MPF se manifestado pela
impossibilidade da celebração do acordo. O juiz de primeiro grau determinou ao
MPF que comprovasse a ciência do acusado quanto à negativa de proposta do
acordo e a ausência de recurso ao órgão superior, o que motivou a interposição
de recurso no TRF4. Com decisão favorável ao MPF, a defesa apresentou recurso especial,
mas o STJ lhe negou provimento e
manteve a decisão em agravo regimental.
O relator, desembargador convocado
Jesuíno Rissato, destacou em seu voto que o STJ já havia se manifestado sobre a
controvérsia no julgamento do HC 677.218, de
relatoria da ministra Laurita Vaz. Na decisão, ela asseverou que não há norma
legal que imponha ao MP a remessa automática dos autos ao órgão de revisão,
tampouco que o obrigue a expedir notificação ao investigado, sendo atribuição
da acusação apresentar os fundamentos pelos quais entende incabível a
propositura do ajuste na cota da denúncia ou
em momento anterior.
Manifesta inadmissibilidade do acordo
justifica não enviar os autos à instância revisora
Baseado nesse precedente, Rissato
entendeu que o juízo de primeiro grau não poderia rejeitar a denúncia amparado
apenas na falta de intimação do
MPF ao investigado para informá-lo do não oferecimento do acordo de não
persecução penal.
"Cumpre ressaltar que, caso seja
recebida a denúncia, será o acusado citado,
oportunidade em que poderá, por ocasião da resposta à acusação, questionar o
não oferecimento de acordo de não persecução penal por parte de Ministério
Público e requerer ao juiz que remeta os autos ao órgão superior do Ministério
Público", esclareceu o relator.
Ao concluir sua fundamentação, Rissato
lembrou que, embora haja a previsão de pedido de revisão por parte da defesa do
investigado, o juízo de primeiro grau deverá analisar as razões invocadas e
poderá, de forma fundamentada, negar o envio dos autos à instância revisora, em
caso de manifesta inadmissibilidade do acordo.
Fonte: STJ.
RODRIGO ROSA ADVOCACIA
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